“Tudo que eu quero saber é onde vou morrer, então nunca irei para lá”, Charlie Munger
Algumas pessoas vivem por tanto tempo que é como se fossem viver pra sempre. A gente se acostuma tanto com a existência delas que temos uma sensação de permanência. Mas a permanência só existe até o dia em que ela não existe mais. Quando esse dia chega, um choque vem junto.
“Ora, mas o sujeito tinha 100 anos! Qual é a surpresa?”
A surpresa é justamente essa. Depois de 100 anos, eu não espero que seja hoje. E então esse pensamento vai seguindo, dia após dia, por mais absurdo que seja.
A Rainha Elizabeth II, por exemplo. Sete décadas de realeza. Nem antibiótico tinha quando ela nasceu. Superou da Segunda Guerra Mundial até o Coronavírus. A sensação era a de que o Reino Unido nunca mais iria ter outra rainha. E, no entanto, o dia chegou para ela.
Porque ele chega para todo mundo.
E chegou ontem para Charles Thomas Munger.
“Passe cada dia tentando ser um pouco mais sábio do que quando acordou – torne-se uma máquina de aprender.”, Charlie Munger
99 anos. 36135 dias. São muitos dias tentando ir dormir mais sábio do que quando acordou. Para alguém como Munger, que entendia tão bem a força do compounding, uma vantagem e tanto.
Munger estava velho, muito velho. Ele partiu com quase um século de vida. Sim, essa é uma forma de ver as coisas. Uma forma de não se surpreender com sua partida.
Mas Munger também partiu apenas um mês depois de participar de um podcast. Apenas alguns meses depois de participar de uma reunião na Daily Journal e de outra na Berkshire. Munger teve, mesmo após quase um século de vida, uma mente que poucos sonharão ter em qualquer idade. Essa, uma outra forma de ver as coisas. Uma forma de se surpreender com sua partida.
“Nós temos uma grande responsabilidade moral de sermos racionais.”, Charlie Munger
Infortúnios não tem preconceito, eles batem na porta de todo mundo. Com Munger não foi diferente. Quase ficou cego, perdeu quase todo o patrimônio e viveu aquele que talvez seja o maior de todos os pesadelos ao ver seu filho de apenas 8 anos perder a luta contra a leucemia.
Munger não falava disso, claro. Não se vangloriava por sua resiliência e nem vendia curso de soluções emocionais. Mas mesmo sem ser específico sobre os fatos da sua vida, já mencionou Epiteto e a idéia de transformar infortúnios em eventos construtivos. Já nos lembrou sobre como a autopiedade é um pensamento desastroso. Na raiz de tudo, acredito, está a racionalidade.
“Outra coisa, claro, é que a vida terá golpes terríveis, golpes horríveis, golpes injustos. Cada infortúnio na vida é uma oportunidade para se comportar bem. Cada infortúnio na vida é uma oportunidade para aprender alguma coisa e seu dever não é ficar submerso na autopiedade, mas utilizar o terrível golpe de uma forma construtiva.", Charlie Munger
Um mesmo traço daquilo que somos se manifesta em diferentes contextos. A racionalidade, em Munger, era um desses traços. E assim como o ajudou a se tornar um dos maiores investidores de todos os tempos, o ajudou a superar seus dramas pessoais. Viver em autopiedade depois de sofrer um infortúnio não é racional.
Em que a sua autopiedade vai te ajudar a virar o jogo?
Na resposta, a razão.
“Sempre recebo a visita de jovens que falam ‘Olha, eu estou cursando Direito e não gosto disso. Prefiro ser um bilionário. Como eu faço?’
E eu digo pra eles, vou te contar uma estória.
Um jovem foi ver Mozart. E ele diz, ‘Mozart, eu quero compor sinfonias.’ E Mozart pergunta, ‘Quantos anos você tem?’. E o sujeito responde, 22. Então ele diz, ‘Você é muito novo para fazer sinfonias’. E o sujeito diz, ‘sou, mas você tinha 10 anos quando começou a compor sinfonias’. E Mozart responde, ‘sim, mas eu não corria atrás dos outros perguntando como se faz.’”, Charlie Munger
Munger foi o maior pensador da indústria. Um filósofo. Como todo filósofo que se preze, deixou várias citações para serem compartilhadas. Ah, e como essas citações são compartilhadas!
Eu sempre fui um pouco crítico com esse compartilhamento desenfreado. Tudo bem que seja feito no Twitter (ou no Substack) mas, se você lê cartas de gestores tanto quanto eu, a sensação é de que Munger trabalha em todas as firmas de investimento do planeta. Soa como uma terceirização de pensamento. Aprender de terceiros é importante mas investir, em última análise, trata-se da descoberta de um processo que se encaixe na sua personalidade e produza resultados consistentes ao longo do tempo. É individual.
Com o tempo eu passei a ser menos crítico. Citar Munger é como citar um poeta, alguém com o dom de colocar em palavras aquilo que sentimos e pensamos. Nem sempre é uma terceirização de pensamento, mas um facilitador de expressão.
E assim fiz as pazes com todos os gestores que citam Munger sem parar.
“Mostre-me o incentivo e eu lhe mostrarei o resultado”, Charlie Munger
Ou quase todos. Uma consequencia do legado de Munger é ele também ser amplamente usado por charlatães e incompetentes. Charlatães e incompetentes tratam figuras como Munger como se fossem agências publicitárias. Pegam citações bem intencionadas e as transformam em slogan para perpetuar uma dor aos seus clientes.
É inevitável. Charlatães e incompetentes sempre vão tentar trazer um ar de legitimidade para manter a roda girando e nada como se apoiar na credibilidade de alguém como Munger pra isso.
Ironicamente, é difícil encontrar alguém com tão pouca tolerância pra bullshitagem quanto Munger. Sua autenticidade, sua velocidade de pensamento e seu humor ácido foram armas que expuseram sistemas políticos, bancos, consultorias, gestores, judiciário, academia e tudo o mais que se sustentasse por distorção de incentivos.
Na sua mais pura expressão de liberdade, Charlie Munger tacava o foda-se e nos divertia no processo:
“A melhor coisa que um ser humano pode fazer é ajudar outro ser humano a saber mais”, Charlie Munger
Hoje é um dia de homenagens. Em tantas dessas homenagens, pessoas narrando o que aprenderam com Munger. Eu admiro essas pessoas porque eu jamais teria a pretensão de fazer um post assim. Levaria tempo demais.
Sobre vantagens competitivas, sobre tomada de decisão, sobre multidisciplinaridade, sobre incentivos, sobre foco, sobre modelos mentais, sobre gestão, sobre moralidade, sobre liderança, sobre vieses, sobre economia, sobre custo de oportunidade…
Munger ajudou muita gente a saber muito mais. E sobre muita coisa.
“Inverta, sempre inverta”, Charlie Munger
Entre tantas vidas tocadas por Munger, talvez a de Buffett seja aquela que sofreu a maior das influências.
Depois de 64 anos de parceria, Buffett volta a tocar o show sozinho.
Em uma nota final, divulgada ontem, ele diz:
“Bekshire Hathaway não poderia ter alcançado seu atual status sem a inspiração, sabedoria e participação de Charlie.”
Poucas palavras de Buffett nesse primeiro momento. Muitas vezes aqueles que mais sentem são os que menos falam.
Mas Buffett está certo, a Berkshire não seria o que é hoje sem Charlie.
A Berkshire não seria a mesma. Buffett não seria o mesmo. Muitos investidores e muitas empresas seriam diferentes.
Menos citações imortalizadas, menos verdades escancaradas.
Inverta.
Um mundo sem Charlie Munger?
Teria sido muito diferente.
Alguns dos principais materiais sobre Munger:
2.The Psychology of Human Misjudgement - Video